terça-feira, 6 de janeiro de 2009

A sinceridade etílica

Quem passou pela Faculdade de Direito da UFC entre os anos 80 e meados de 2000 lembra-se, certamente, do Gonçalves. Ele foi aluno da "Salamanca", tendo sido jubilado, ao que me parece, no final dos anos 90. Era uma figura adorável. No entanto, alguns não gostavam de sua postura, digamos, incisiva. Para ser mais objetivo, ele "não tinha papas na língua" e gostava de alertar para a nudez do rei, o que constrangia os súditos babões.
Era uma espécie de Diógenes contemporâneo: extremamente culto (diz a lenda que teria lido 5000 livros), dono de uma ironia fina e totalmente desprovido de bens materiais. Longe de deter a mera "cultura de almanaque", conhecia profundamente os assuntos que debatia. Infelizmente padecia de alcoolismo, o que o levou a morar nas ruas e a sujeitar-se a uma situação degradante. Ele gostava de dizer que um homem só se mostra por inteiro em duas situações: quando tem dinheiro ou quando está bêbado.
Essa assertiva do meu amigo Gonçalves me veio à mente quando lembrei de um episódio interessante que vivi na advocacia. O escritório em que trabalhava tinha como cliente um grande conglomerado financeiro. À medida em que seus ganhos cresciam vertiginosamente, também crescia, exponencialmente, o número de demandas de seus clientes contra as cláusulas abusivas presentes em seus contratos. Por mais que nos esforçássemos em busca de novas teses jurídicas a justificar a legalidade daquelas regras, a sucumbência era o resultado de 95% dos casos.
Determinado a não fazer sempre "mais do mesmo", resolvi estudar os contratos e sugerir algumas mudanças que diminuiriam sensivelmente o número de demandas. Depois de um exaustivo trabalho, submeti-o ao crivo do diretor jurídico do banco, em São Paulo. Ele desmanchou-se em elogios a mim e ao escritório, tecendo loas ao nosso comportamento "pró-ativo" e prometendo analisá-lo detidamente.
Passaram-se vários meses até que ele veio nos visitar em Fortaleza. Saímos os integrantes do escritório e ele para comer caranguejo na Praia do Futuro. Fascinado pelo sabor do crustáceo, acompanhou sua degustação com uma boa quantidade de cerveja e logo estava bem à vontade. Lembrei do tal relatório e perguntei-lhe o seu destino. Ele sorriu, olhos baixos e nó da gravata desfeito, me deu dois tapinhas nas costas e confessou:
- Meu amigo, que ótimo trabalho você fez! Mas é o seguinte: a gente já sabe de tudo aquilo; é tudo errado mesmo, tudo cláusula abusiva...Mas sabe como é né? Acaba compensando sabe? É uma questão atuarial: de cada 100 contratos que firmamos, menos de 10 são questionados na Justiça. E adivinha quem paga a conta? Os outros 90, claro! (sic)
Fiquei muito indignado, mas disfarcei. Não queria estragar a noite e a cerveja estava estupidamente gelada.
A partir daí passei a ver as coisas de um ângulo diferente e cheguei à conclusão que não podia me violentar. Meses depois tomei outro rumo profissional e decidi mudar de trincheira: os bancos ganharam um modesto, mas aguerrido adversário nos fóruns.
E o Gonçalves, mais uma vez, tinha razão: jamais ouvira aquela revelação se meu interlocutor não estivesse sob os efeitos da "loura gelada".

3 comentários:

Alexandre disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alexandre disse...

Encontrei Gonçalves umas duas vezes nos corredores da Faculdade de Direito, como não fui vítima de sua língua ferina, pode-se dizer que sai ileso, mas é bem verdade que estava sóbrio, e só com alguns trocados no bolso.
O curioso no post é a ideia (seguindo o novo acordo ortográfico) que o abuso pode se perpetuar enquanto "caber na conta". Lamentável, louvo sua decisão, se a questão, não é justa, mas autorial, bem vamos encará-la assim e fazer estes @!$@%@$$ entender que não se pode seguir assim.

Janaína disse...

...e eu me orgulho cada vez mais de tê-lo como amigo, aguiarzinho!
ps1: ei..confesso que à vezes 'rolava' medo do Gonçalves - embora deva concordar com tudo o que você disse sobre ele! :P
ps2: que sua atitude semeie a vontade de ampliar o número de pessoas que lutam por seus direitos...quem sabe, um dia, o malfadado gerente mude de ideia quanto ao que realmente compensa...
ps3: falar de caranguejo na praia p'ra quem 'tá morando longe de casa é p.@#$%¨! :P