quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A JUSTIÇA QUE NÃO QUEREMOS (Publicado n'O Estado em 28/01/2010)

Uma situação singular vem atormentando os que militamos diariamente nos fóruns de nosso Estado: a paranóia em baixar processos de qualquer forma e, pior ainda, em escusar-se de julgá-los, por parte de certos juízes.
Já tivemos a oportunidade de nos manifestarmos neste espaço sobre os males que a Meta 2, não obstante a boa intenção da iniciativa, tem causado à celeridade dos demais processos que não estão nela incluídos. Mas outro aspecto nos tem chamado atenção: a concretização do antigo ditado popular, segundo o qual a pressa é inimiga da perfeição. O que se observa é que nessa louca corrida pelo arquivamento do maior número de processos possíveis, aumenta-se exponencialmente o risco de erros judiciais. É claro que uma justiça célere é o sonho de todos, mas celeridade não é sinônimo de precipitação. E o que se vê é uma enxurrada de reclamações por parte de colegas advogados, reclamando de deslizes grosseiros cometidos pelas secretarias de vara e afronta aos mais elementares princípios processuais, mormente os da ampla defesa e do contraditório. Aquela conversa de que “juiz não lê petição” parece cada vez mais verossímil. Eu mesmo tenho sofrido com isso, mas como aqui não é divã vou poupá-los dos meus lamentos.
Mas não os pouparei de outra vertente igualmente repulsiva do problema: aqueles juízes que, reforçando o injusto estigma do brasileiro, encontraram um jeitinho de aumentar suas estatísticas de arquivamento de processos, sem trabalhar.
O problema é muito maior nos juizados especiais. Funciona assim: quando o magistrado recebe um processo procura de todas as formas possíveis e imaginárias se dizer incompetente para o seu julgamento, seja em razão da área de abrangência da jurisdição, seja pela famosa “complexidade da matéria”.
O primeiro caso - da jurisdição do juizado – nem seria tão revoltante assim se as próprias unidades dos juizados não tivessem dúvidas quanto à sua área de atuação, fazendo um “jogo de empurra” com advogados e cidadãos. No site do Tribunal não existe uma ferramenta de busca automática do juizado competente pelo CEP, o que é uma solução tão óbvia quanto fácil de ser implantada. Há, sim, uma descrição da abrangência geográfica de cada unidade tão complicada que Milton Santos levaria horas para entendê-la.
Porém, o que mais causa indignação é a mania de alguns juízes de atribuírem a causas simples um grau de complexidade que atenta contra o bom senso de qualquer ser humano. Por exemplo, alguns dizem serem complexas as ações revisionais de empréstimos bancários ou de contratos de cartão de crédito. O cálculo dos juros e encargos é feito com facilidade por qualquer pessoa minimamente instruída com programas que se encontram na internet. No DECON, um estagiário do primeiro ano de contabilidade o faz em poucos minutos. A abusividade dos contratos é clara aos olhos de quem mal sabe as quatro operações fundamentais da aritmética. Mas os doutos detentores do poder de decidir acham tal questão muito complicada. Subjacente a esse entendimento há, sim, uma repulsa a uma demanda tão comum causada pela sanha descontrolada pelo lucro por parte das instituições financeiras e o medo dos juízes de enfrentar o lobby descarado que eles fazem nas instâncias superiores do Poder Judiciário. E há também, certamente, uma visão totalmente desvirtuada da filosofia dos juizados especiais: uma justiça do povo, para o povo e simples como o povo.
Nesta senda, alguns chegam mesmo a não admitir qualquer tipo de perícia no âmbito do juizado, afrontando a própria Lei 9.099/95, que no seu artigo 32 considera hábeis todos os meios de prova moralmente legítimos e no artigo 35 admite expressamente a realização de perícia informal. A própria natureza da prova pericial no Código de Processo Civil foi modificada há muito tempo pela Lei 8452/92, atenuando-lhe o rigor formal ao alterar a redação do parágrafo 2º do artigo 421 para prever que a “perícia poderá consistir apenas na inquirição pelo juiz do perito e dos assistentes, por ocasião da audiência de instrução e julgamento”. Ou seja, contrariam a lei para diminuir seus processos, ao invés de julgá-los. E os homens e mulheres, sedentos por justiça, se desencantam cada vez mais. Resta-lhes fazê-la com as próprias mãos, quando possível. Quando não, conformam-se mais uma vez, como tantas vezes na vida o povo é obrigado diante das dificuldades desse labirinto kafkiano.
Não é essa a justiça que queremos. Está longe disso. O povo quer um Judiciário com a infraestrutura adequada, com funcionários treinados e em número suficiente. Mas quer, principalmente, juízes destemidos, independentes, que ouçam o clamor das ruas em seus gabinetes refrigerados e que não se utilizem de tais artifícios para tentar conferir à Justiça uma imagem de celeridade que se desfaz rapidamente, como uma miragem, no chão quente da vida real.