terça-feira, 3 de março de 2009

Capim-guiné

"Tá vendo tudo
E fica aí parado
Cum cara de viado
Que viu caxinguelê"
Raul Seixas (Capim-Guiné)
Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, final de 2008, aproximadamente 22:00h. Esse foi o cenário de uma das mais surreais situações que vivi na Fortaleza de Nossa Senhora d’Assunção.
Estacionei o meu carro nas proximidades da boate Órbita, para onde me dirigia com minha esposa e um casal de amigos. Fui, então, surpreendido com a figura de um guardador de carros que me disse, na lata:
- É “três real” patrão!
Iniciou-se, assim, um dos papos mais absurdos da minha vida:
- Três reais o quê, meu amigo?
- Para estacionar aqui. É “três real”!
- Aqui? No meio da rua?
- É, doutor, é a tabela!
- Tabela? Que tabela?
- Da associação... - E apontou a inscrição no colete que usava, que trazia a sigla AVV (Associação dos Vigilantes de Veículos) e o nome do deputado estadual Caminha.
- Mas cara, vocês estão cobrando para eu estacionar o meu carro na via pública? E se eu não quiser pagar?
- Você que sabe “dotô”...’Tá cheio de vagabundo por aí. Às vezes eles riscam o carro só pra fazer o mal. Se a gente ficar olhando aí o senhor fica tranqüilo – Disse com um sorriso sarcástico.
Ficou claro quem seria o “vagabundo” que riscaria meu carro, caso eu não sucumbisse à extorsão: estava na minha frente. E só não o disse porque estava com minha esposa e amigos, e não queria estragar a noite. Preferi resmungar alguma coisa, tirar meu carro da vaga e colocar num estacionamento onde pagava cinco reais pela noite toda, mas pelo menos, poderia acionar judicialmente o estabelecimento caso alguma coisa acontecesse a ele.
É impressionante a questão dos estacionamentos aqui em Fortaleza. Todo dia, em todos os locais da cidade, nos vemos coagidos, chantageados e extorquidos pelos guardadores de veículos.
A maioria chega a apurar cerca de R$ 30,00 por dia, o que explica o fato de já existir um comércio de pontos entre eles. Há até alguns “guardadores-empresários” que alugam o ponto em eventos especiais. Na Bienal do Livro, por exemplo, um guardador – na tentativa de me convencer a pagar os R$ 2,00 que cobrava - me disse que teria arrendado o ponto durante o evento por R$ 500,00.
Agora, o que me deixa mais embasbacado mesmo é saber que um parlamentar, o deputado estadual Francisco Caminha apóia essa prática. Vi o seu nome no colete no flanelinha, mas, sinceramente, prefiro não acreditar. Deve ser um engano! Não é possível que um representante por nós eleito compactue com a privatização do espaço público e com o constrangimento por que passamos diariamente em nossa capital.
Não posso olvidar que esse problema tem seu nascedouro na desigualdade social necessariamente gerada pelo sistema capitalista. Mas é certo também que muitos deles veem nessa atividade uma fonte de renda que já passou do mero “bico”, se dando ao luxo, até, de arrendar ou vender seus “pontos”. Muitos, com certeza, não deixariam essa atividade em troca de um trabalho formal. Outra certeza irrefutável, para mim, é que aquela explicação sociológica da questão, não obstante verdadeira, serve muito mais de justificativa para a omissão do Estado em promover políticas públicas de geração de renda e para a completa impotência das polícias e do Ministério Público diante da situação.
Para nós, da chamada classe média, parcialmente responsáveis pela desigualdade social que nos cerca e sufocados nos guetos em que, paradoxalmente, nos sentimos menos ameaçados pelo lumpesinato que fomentamos, resta ficar sentado “com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar” ou assumirmos nosso papel de transformação social. Restam ainda uma terceira e uma quarta vias, é verdade: andar a pé ou botarmos a flanelinha no ombro e ocupar nosso próprio ponto de estacionamento. Afinal, de contas, nada como a concorrência para baixar os preços e melhorar a qualidade dos serviços. Milton Friedman ficaria orgulhoso!