quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Barricada

Após o post anterior conversava sobre seu conteúdo com meu dileto amigo Alexandre, dono de intelecto dos mais privilegiados e de um dos melhores blogs da internet brasileira (http://www.fantasmanamaquina.blogspot.com/).
Ele me disse que achava muito interessante essa espécie de barricada que engendrei após minha decepção com a forma como os bancos gerenciam sua carteira de processos judiciais.
Naquele momento percebi a importância de uma ofensiva real contra as artimanhas dos bancos, usando como arma essa democrática ferramenta que é a internet, não obstante a exclusão digital que ainda persiste.
A referida jihad será perpetrada na forma de dicas que ajudem o consumidor a lidar com oponentes muitíssimo mais poderosos.
Inicialmente é importante entender como funciona a política de acordos dos bancos e o que os leva a fazer ou não determinada composição em juízo. A instituição bancária sempre deixa reservado um valor correspondente ao total pleiteado nas ações em trâmite num determinado ano fiscal. Se, por exemplo, um banco tem 1000 ações, cada uma requerendo o valor de R$ 1.000,00, será reservado um valor total R$ 1.000.000,00. A isso eles chamam de contigenciamento. É dinheiro parado e o maior pesadelo dos administradores de tais empresas é já começar um novo ano com um alto contigenciamento remanescente do ano anterior.
Por isso, a partir do segundo semestre de cada ano os departamentos jurídicos dos bancos intensificam a busca por encerramento das ações através de acordos. É uma verdadeira operação de guerra, que eles batizam como "Campanha de Acordo", com metas elevadíssimas a serem atingidas pelos escritórios contratados. A partir de outubro, o desespero começa a transparecer e é nessa época que são feitos acordos judiciais nas ações revisionais com até 90% de desconto sobre o valor inicialmente cobrado pela instituição financeira.
E pasmem, mesmo perdoando quase a totalidade da dívida eles ainda não saem perdendo, tamanha as taxas de juros, as multas e demais penduricalhos contratuais pagos pelo pobre consumidor até que ele "se manque" e ajuize uma ação para desfazer a armadilha.
Por isso, a primeira dica é a seguinte: se você está sofrendo com as claúsulas abusivas dos contratos bancários, procure um advogado ou defensor público e proponha uma ação judicial. Não perca tempo com reclamações nos Procon's ou Decon's, que prestam um grande serviço mas que nesses casos, infelizmente, tem muito pouco a fazer além de intermediar um acordo.
Segunda dica: se seu nome estiver em cadastro de inadimplentes peça uma tutela antecipada, em caráter liminar, para a retirada da restrição. Atente-se para o fato de que algumas decisões judiciais vem entendendo necessário o depósito do valor incontroverso da dívida discutida. A doutrina, no entanto, não caminha nesse sentido. E nem poderia, pois tal entendimento significa total desprezo às regras do livre e amplo acesso ao Judiciário e da sua inafastabilidade. Na prática, as liminares nesse sentido, com acerto, ainda vem sendo concedidas.
Terceira dica: retirado o seu nome dos cadastros de inadimplentes, não desanime se na primeira audiência, ainda no primeiro semestre, os representantes do banco não oferecerem acordo e demonstrarem até um certo pedantismo. Em geral, não passa de mis en cène. Mais: resista ao primeiro acordo proposto pelo banco; em regra são de fazer corar o personagem de Robert Redford no péssimo "Proposta Indecente". Fique tranquilo: invariavelmente eles o procurarão por telefone com uma boa proposta a partir de setembro ou surgirão sorridentes e com uma generosidade ímpar na audiência de instrução, acaso ela ocorra. Entenda que a demora no trâmite da ação só prejudica a eles e que, na maioria dos casos, o seu direito é bom e uma vitória é bastante provável. Se for o caso, faça contrapropostas e aguarde.
É mesmo um jogo de gato e rato, mas cujas regras normalmente só eles conhecem, principalmente se você não contar com a assessoria de um advogado particular ou de um defensor público.
Espero que a população brasileira torne-se cada vez mais consciente de seus direitos e passe a exigi-los judicialmente quando fracassar o diálogo. Só assim, como nos filmes de Tom & Jerry, o rato vai dar o troco no gato.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

A sinceridade etílica

Quem passou pela Faculdade de Direito da UFC entre os anos 80 e meados de 2000 lembra-se, certamente, do Gonçalves. Ele foi aluno da "Salamanca", tendo sido jubilado, ao que me parece, no final dos anos 90. Era uma figura adorável. No entanto, alguns não gostavam de sua postura, digamos, incisiva. Para ser mais objetivo, ele "não tinha papas na língua" e gostava de alertar para a nudez do rei, o que constrangia os súditos babões.
Era uma espécie de Diógenes contemporâneo: extremamente culto (diz a lenda que teria lido 5000 livros), dono de uma ironia fina e totalmente desprovido de bens materiais. Longe de deter a mera "cultura de almanaque", conhecia profundamente os assuntos que debatia. Infelizmente padecia de alcoolismo, o que o levou a morar nas ruas e a sujeitar-se a uma situação degradante. Ele gostava de dizer que um homem só se mostra por inteiro em duas situações: quando tem dinheiro ou quando está bêbado.
Essa assertiva do meu amigo Gonçalves me veio à mente quando lembrei de um episódio interessante que vivi na advocacia. O escritório em que trabalhava tinha como cliente um grande conglomerado financeiro. À medida em que seus ganhos cresciam vertiginosamente, também crescia, exponencialmente, o número de demandas de seus clientes contra as cláusulas abusivas presentes em seus contratos. Por mais que nos esforçássemos em busca de novas teses jurídicas a justificar a legalidade daquelas regras, a sucumbência era o resultado de 95% dos casos.
Determinado a não fazer sempre "mais do mesmo", resolvi estudar os contratos e sugerir algumas mudanças que diminuiriam sensivelmente o número de demandas. Depois de um exaustivo trabalho, submeti-o ao crivo do diretor jurídico do banco, em São Paulo. Ele desmanchou-se em elogios a mim e ao escritório, tecendo loas ao nosso comportamento "pró-ativo" e prometendo analisá-lo detidamente.
Passaram-se vários meses até que ele veio nos visitar em Fortaleza. Saímos os integrantes do escritório e ele para comer caranguejo na Praia do Futuro. Fascinado pelo sabor do crustáceo, acompanhou sua degustação com uma boa quantidade de cerveja e logo estava bem à vontade. Lembrei do tal relatório e perguntei-lhe o seu destino. Ele sorriu, olhos baixos e nó da gravata desfeito, me deu dois tapinhas nas costas e confessou:
- Meu amigo, que ótimo trabalho você fez! Mas é o seguinte: a gente já sabe de tudo aquilo; é tudo errado mesmo, tudo cláusula abusiva...Mas sabe como é né? Acaba compensando sabe? É uma questão atuarial: de cada 100 contratos que firmamos, menos de 10 são questionados na Justiça. E adivinha quem paga a conta? Os outros 90, claro! (sic)
Fiquei muito indignado, mas disfarcei. Não queria estragar a noite e a cerveja estava estupidamente gelada.
A partir daí passei a ver as coisas de um ângulo diferente e cheguei à conclusão que não podia me violentar. Meses depois tomei outro rumo profissional e decidi mudar de trincheira: os bancos ganharam um modesto, mas aguerrido adversário nos fóruns.
E o Gonçalves, mais uma vez, tinha razão: jamais ouvira aquela revelação se meu interlocutor não estivesse sob os efeitos da "loura gelada".